segunda-feira, 28 de agosto de 2017

ATLAS REVELA COMO MUTAÇÕES NO GENOMA AFETAM EVOLUÇÃO DO CÂNCER

Estudo mostra as muitas faces da doença e abre caminho para criação de novas ferramentas de diagnóstico precoce e tratamentos personalizados
RIO – Num esforço que especialistas apontam como um dos maiores avanços nos últimos anos na chamada medicina de precisão, ou personalizada, contra o câncer – em que o tratamento é guiado pelas características específicas da doença, como seu perfil genético, num determinado paciente -, cientistas suecos divulgaram ontem um novo Atlas de Patologia Humana que mostra como milhares de mutações associadas a 17 dos principais tipos de tumores afetam a produção de proteínas e o metabolismo das células cancerosas, influenciando assim na perspectiva de sobrevida do doente, isto é, seu prognóstico. Com isso, eles esperam não só melhorar ainda mais as terapias individualizadas como abrir caminho para o desenvolvimento de novas ferramentas de diagnóstico precoce e medicamentos contra os variados tipos de câncer que sejam mais eficientes no ataque aos tumores e, ao mesmo tempo, tenham menos efeitos colaterais.
Já há alguns anos médicos e cientistas sabem que o câncer não é uma doença só, mas manifestações de diferentes alterações no DNA das células que levam a um resultado comum: provocar sua multiplicação desordenada. Portanto, a criação do novo atlas da patologia genética do câncer começa com o próprio sequenciamento do genoma humano, concluído pela primeira vez em 2003. A partir dele, pesquisadores identificaram milhares de mutações associadas ao surgimento dos tumores, que foram reunidas no também primeiro Atlas do Genoma do Câncer, publicado inicialmente em 2013.
MAPA DOS TUMORES MAIS COMUNS
ANÁLISE DE 17 TIPOS DE CÂNCER LEVA EM CONTA DADOS DE 8 MIL PACIENTES
Mas o DNA é apenas o início da história. Localizado no núcleo celular, ele precisa ser “transcrito” por outro tipo de molécula genética, o RNA, que então transmite seu código para organelas dentro das próprias células, os ribossomos, que por sua vez vão seguir suas instruções para finalmente produzir as proteínas que precisamos para viver. Assim, embora alterações no DNA possam levar à produção de proteínas defeituosas, há um longo caminho entre estas mutações e seus efeitos no funcionamento das células. E é bem no meio dele, o chamado transcriptoma, que está o novo atlas.
– Este estudo difere de investigações anteriores sobre o câncer por não se focar nas mutações, mas sim nos efeitos finais destas alterações em todos genes que codificam proteínas – destaca Mathias Uhlen, diretor do consórcio Atlas das Proteínas Humanas, que busca revelar como o genoma é traduzido em todas as proteínas que precisamos, o chamado “proteoma”, e líder do esforço do Atlas de Patologia, do qual é derivado e cuja compilação foi relatada ontem em artigo publicado na revista “Science”. – Mostramos, pela primeira vez, a influência dos níveis de expressão (atividade) dos genes (na evolução do câncer), demonstrando o poder do “big data” (grandes quantidades de dados) no modo como a pesquisa médica é feita. E mostramos também a importância das políticas de acesso aberto na ciência, em que os pesquisadores compartilham dados uns com os outros para permitir a integração de enormes quantidades de dados de diferentes fontes.
E de fato não foram pouco os dados usados na criação do novo atlas. Para isso, os cientistas usaram um centro nacional de supercomputação na Suécia para analisar mais de 2,5 petabytes de informação – o equivalente a mais de 33 anos seguidos de vídeos em alta resolução – baseados em dados sobre 17 tipos de tumores em mais de 8 mil pacientes do Atlas do Genoma do Câncer e cruzá-los com dados clínicos dos próprios pacientes para gerar mais de 100 milhões estatísticas de prognósticos da doença. Com isso, eles geraram mais de 900 mil diagramas que mostram como o RNA e os níveis de proteínas por ele codificados para fabricação pelas células cancerosas afetam a expectativa de sobrevida dos pacientes, revelando assim quais mutações têm melhor e pior prognóstico para cada tipo de câncer.
– Este é um dos estudos mais importantes dos últimos anos na área e, arriscaria dizer, uma das maiores ferramentas já geradas para dar base a estratégias de medicina de precisão contra o câncer – considera Carlos Gil, médico do Grupo Oncologia D’Or e diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC). – O Atlas do Genoma do Câncer gerou muitas informações sobre o sequenciamento genético dos tumores, mas ainda faltava uma análise clínica de tudo isso, como sua influência nos prognósticos da doença.
Já para André Murad, coordenador da disciplina de Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor clínico da Personal, clínica especializada no uso do diagnóstico genético para tratamento do câncer, o novo atlas “é um marco na luta” contra a doença ao abrir a trilha para desvendar os efeitos das mutações genéticas no metabolismo das células cancerosas, o que chamou de “metaboloma”. Isto porque, explica, nem sempre uma mutação genética leva à produção de uma proteína defeituosa cujo ganho ou perda de função desencadeie o câncer, assim como nem todo câncer é fruto de uma alteração direta no DNA, podendo também ser resultado dos chamados processos epigenéticos, em que fatores ambientais provocam a ativação ou desligamento de um determinado gene na célula.
– O estudo é um grande salto sobre o Atlas do Genoma do Câncer, pois estabeleceu um paradigma para tudo que está além do genoma no perfil metabólico dos tumores e seu prognóstico – avalia. – Ele pode ajudar a explicar, por exemplo, porque apesar da indicação dada pelo diagnóstico genético alguns pacientes não respondem ao tratamento como o esperado. O câncer na verdade é várias doenças com suas assinaturas genéticas e moleculares individuais, e cada uma delas deve ser tratada de forma diferente se vamos tentar desfazer as consequências moleculares daquela alteração genética daquele determinado paciente.
Tanto Gil quanto Murad destacam que embora os achados do novo atlas ainda precisem ser validados em outros dos chamados coortes de pacientes, já que podem ter sido afetados por características específicas da base de dados usada na sua montagem, eles deverão fundamentar centenas de outros estudos que poderão levar ao desenvolvimento de novas ferramentas de prevenção, diagnóstico precoce e combate ao câncer, como o recém-relatado exame de sangue criado por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, que se mostrou capaz de detectar mesmo pequenas quantidades de DNA específico da doença e foi usado para identificar de forma acurada mais de metade dos casos de 138 pessoas que estavam com câncer colorretal, de mama, pulmão ou ovário ainda em seus estágios iniciais.
– É difícil saber qual será o tamanho das implicações que ele terá no futuro tanto do tratamento quanto no diagnóstico do câncer, mas certamente será muito grande – diz Gil. – A partir deste atlas, teremos novos biomarcadores para serem usados tanto na medicina de precisão quanto no diagnóstico.
Murad, por sua vez, lembra ainda que com o aprofundamento dos conhecimentos sobre a relação entre o genoma e o metabolismo do câncer será possível reduzir os custos dos diagnósticos genéticos da doença ao focá-los em um grupo menor de genes, ajudando a democratizar o acesso à medicina de precisão, além de permitir a produção de drogas mais específicas contra cada tipo de manifestação da doença, reduzindo a toxicidade, isto é, os efeitos colaterais, do tratamento.
– Outra linha interessante aberta por este estudo é que também poderemos atuar metabolicamente contra o câncer, atacando os fatores que levam ao seu desenvolvimento no lugar de tentar matar as células cancerosas em si – conclui.

*Fonte: O Globo